UM BREVE COMENTÁRIO À ORAÇÃO DA AVE MARIA: “CHEIA DE GRAÇA”

Examinamos em um artigo anterior a saudação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria (“Ave Maria […] o Senhor é convosco” – Lc 1, 28), deixando para um artigo futuro a expressão “cheia de graça”. Neste artigo, analisaremos justamente essa expressão.

“Cheia de graça”

No grego, há um jogo de palavras entre a saudação “ave” ou “alegra-te” (“chaire”, do verbo “chairo”) e a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”, do verbo “charitoo”). Através de um exame da expressão “cheia de graça”, podemos aprender muitas coisas importantes sobre a Virgem Santíssima.

Em primeiro lugar, o verbo grego por trás de “cheia de graça” (“charitoo”: “agracio”) significa conceder graça, demonstrar favor. O verbo está na voz passiva, indicando que Nossa Senhora foi alvo do favor de Deus, que ela recebeu a graça de Deus. O Arcanjo explica isso em Lc 1, 30: “Encontraste graça [“charin”] junto a Deus”. Esse fato nos ensina que a Virgem Maria deve tudo o que é ao próprio Deus. Ela é, como diz de si mesma, a “serva [“escrava”] do Senhor” (Lc 1, 38), de “condição humilde”, para a qual o Senhor olhou (Lc 1, 48. 52).

Segundo, esse verbo grego está no particípio e funciona como um adjetivo substantivado, sendo usado pelo Arcanjo Gabriel como um título para Nossa Senhora. É importante observar que, no texto bíblico, o nome “Maria” não aparece na saudação. O verbo traduzido como “cheia de graça” toma o lugar do seu nome. Isso é muito significativo. A identidade de Maria Santíssima é de tal forma definida pela graça recebida de Deus que “cheia de graça” se torna seu título. A singularidade desse fenômeno fica ainda mais evidente pelo fato de que esse é o único lugar em toda a Bíblia em que um anjo se dirige a alguém por um título ao invés de um nome, e é o único lugar da Bíblia em que a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”) aparece. A saudação do Arcanjo foi tão incomum que Nossa Senhora “perturbou-se com essas palavras e pôs-se a pensar no que significaria a saudação” (Lc 1, 29). Desse modo, podemos dizer que ser “agraciada” é a grande característica de Nossa Senhora, e que ela a possui de uma maneira exclusiva.

Por causa desse fato, São Jerônimo escolheu a expressão “cheia de graça” (“gratia plena”) na Vulgata para traduzir o verbo grego “kecharitomene” em Lc 1, 28. Mais do que isso, com base nessa expressão, Padres e Doutores da Igreja descrevem a Virgem Maria como aquela sobre a qual repousaram todas as graças de Deus, que foi adornada com todos os dons do Espírito Santo e que, por isso, é a maior de todas as criaturas.

Em terceiro e último lugar, o verbo grego “kecharitomene” está no tempo verbal perfeito, que não tem equivalente em português. O perfeito do grego indica uma ação completa no passado com efeitos presentes. Ao descrever Maria Santíssima como “cheia de graça” com o uso do perfeito, Gabriel Arcanjo indica que Nossa Senhora foi agraciada por Deus em um momento anterior à sua conversa com ela, e que, como resultado dessa ação de Deus, a Virgem continuava agraciada.

Que momento anterior foi esse em que a Virgem Maria foi agraciada por Deus? Tanto o profeta Jeremias (Jr 1, 5) quanto São João Batista (Lc 1, 15) o foram no ventre materno. Se Nossa Senhora é a “cheia de graça” por excelência, deve ter sido agraciada em um momento anterior a eles e de uma maneira superior.

Desde o início da Igreja, havia uma convicção de que Maria Santíssima foi agraciada a ponto de ser completamente livre de toda a mancha do pecado. Santo Agostinho, no século V, por exemplo, escreve a respeito de Maria Santíssima:

[aux_quote type=”blockquote-normal” text_align=”left” quote_symbol=”1″ title=”Santo Agostinho” extra_classes=””]“Excetuo a santa Virgem Maria, sobre a qual, devido à honra ao Senhor, não quero discutir, eis porque sabemos que lhe foi concedido um grau mais elevado de graça para vencer totalmente o pecado, pois mereceu conceber e dar à luz aquele a respeito do qual não consta que tivesse pecado” (SANTO AGOSTINHO. A natureza e a graça. In: A graça (I). São Paulo: Paulus, s.d., 36).[/aux_quote]

Essa compreensão foi amadurecendo até o século XIII, quando o Beato João Duns Scotus defendeu, em seus comentários ao Terceiro Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, que a graça com a qual Nossa Senhora foi alcançada envolveu ter sido ela preservada do pecado original, e que isso aconteceu no momento da sua concepção:

[aux_quote type=”blockquote-normal” text_align=”left” quote_symbol=”1″ title=”Duns Scotus” extra_classes=””]“Como filha e descendente de Adão, Maria deveria contrair o pecado de origem, mas perfeitamente redimida por Cristo, não incorreu nele. Quem atua mais perfeitamente? O médico que cura a ferida do filho caído ou o que, sabendo que seu filho irá passar por determinado local, se adianta e tira a pedra que provocará o tropeço? Sem dúvida alguma, o segundo. Cristo não seria perfeitíssimo redentor se, pelo menos em um caso, não redimisse da maneira mais perfeita possível. Pois bem; é possível prevenir a queda de alguém no pecado original. E se devia fazê-lo em algum caso, o fez no caso de sua Mãe”.[/aux_quote]

O entendimento da Imaculada Conceição de Maria, que se tornou cada vez mais universal, foi declarado como dogma pelo Papa Beato Pio IX, na Constituição Apostólica “Ineffabilis Deus”, em 1854: “A santíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda mancha de culpa original no primeiro instante de sua Concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, na atenção aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano”. Desse modo, Deus é o Salvador da Virgem Maria (Lc 1, 47) da maneira mais perfeita possível, nem mesmo permitindo que ela contraísse a mancha do pecado original.

Tudo isso que aprendemos sobre Maria Santíssima como “cheia de graça” se relaciona com o que vimos no artigo anterior. Maria precisava ser a “cheia de graça” para cumprir sua missão como Mãe de Deus. Como Nossa Senhora seria um templo (Lc 1, 35), onde habitaria aquele que é “cheio de graça” (“pleres charitos”) e verdade (Jo 1, 14), era apropriado que ela fosse a “cheia de graça” (“kecharitomene”). Assim como no templo do Antigo Testamento não poderia haver impureza ou defeito (Lv 21; 22), também era necessário que a Mãe de Deus fosse completamente livre de toda imperfeição.

Além de templo, a Virgem Maria também é a nova Eva, que desfaz com sua obediência a desobediência da primeira Eva. Para que isso fosse possível, era necessário que ela tivesse a mesma pureza e integridade da primeira Eva antes da queda:

[aux_quote type=”blockquote-normal” text_align=”left” quote_symbol=”1″ title=”Santo Efrém” extra_classes=””]“Maria e Eva, duas pessoas sem culpa, duas pessoas simples, eram idênticas. Depois, no entanto, uma se tornou a causa da nossa morte, a outra, a causa da nossa vida” (SANTO EFRÉM, Op. syr., 2, 327).[/aux_quote]

Concluímos, desse modo, que poucos títulos de Nossa Senhora são tão elogiosos quanto o “cheia de graça”. Ao saudá-la assim na oração da Ave Maria, reconhecemo-la como a serva do Senhor, de condição mais humilde que, no entanto, foi de tal modo agraciada e salva por Deus, que se tornou a mais perfeita de todas as criaturas, acima de anjos e homens. Deus, de fato, “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os de condição humilde” (Lc 1, 52). Por que, então, não rezar uma Ave Maria agora à Mãe de Deus e nossa Mãe, louvando as grandes coisas que o Poderoso fez por ela (Lc 1, 49)?

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

André Aloísio

Teólogo


Comments

6 respostas para “UM BREVE COMENTÁRIO À ORAÇÃO DA AVE MARIA: “CHEIA DE GRAÇA””

  1. Avatar de Candido José Costa Ferreira Araújo Filho
    Candido José Costa Ferreira Araújo Filho

    Que a Cheia de Graça interceda a seu Filho Jesus para que possamos nos alimentar, de migalhas que sejam, da vossa Graça.

  2. Avatar de Tania Maria
    Tania Maria

    Excelente… Já era apaixonada. Agora, então, rezarei com mais atenção e firmeza.
    Salve Maria.

  3. Avatar de Ana Carolina
    Ana Carolina

    Ó Maria concebida sem pecados, rogai por nós e por todos que não recorrem a vós. ❤️🙏🏼

  4. Avatar de Camilla Brum
    Camilla Brum

    Simplesmente incrível! Eu como recém convertida oriunda do protestantismo… estou maravilhada.

    1. Avatar de Henrique Carvalho
      Henrique Carvalho

      Também sou recém convertido e ex-protestante.

  5. Avatar de Jaciane Araújo Souza
    Jaciane Araújo Souza

    Deus faz tudo conforme a sua vontade! Salve Maria, cheia de graça. Amém!

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